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atriz | roteirista
  • Foto do escritorStephanie Degreas

QUEBRANDO OS ARCOS: TODO DIA A MESMA NOITE

(Este texto é inteiro recheadinho de spoilers de Todo dia a mesma noite; se você ainda não viu a série, sugiro que assista antes de ler!)

Hoje a tarefa é tentar QUEBRAR O ARCO da minissérie de 5 episódios Todo Dia a Mesma Noite, criada e escrita por Gustavo Lipsztein, baseada no livro homônimo de Daniela Arbex e disponível na Netflix. Vamos, vamos?!


(frame da série Todo Dia a Mesma Noite, disponível na Netflix)


Para quem não lembra (ou não conhece),

a minissérie Todo dia a mesma noite conta a história do incêndio na Boate Kiss, ocorrido em Santa Maria, em 2013, desde a ida das vítimas à boate até os dias de hoje, quando suas famílias seguem reivindicando a punição dos muitos responsáveis pela morte de 242 pessoas.


A trajetória que acompanhamos durante os episódios é a luta de mães e pais por justiça. E, para falar um pouquinho além do roteiro, que delícia é poder assistir a um elenco experiente te arrebatando a cada cena. Embora isso não seja crucial para a análise, já deu para perceber que gostei da série, com roteiro do Gustavo Lipsztein, assistência de roteiro da Carolina Nishikubo e consultoria da própria Daniela Arbex. Quem assina a direção geral é Julia Rezende.


Nossos protagonistas são Pedro (Thelmo Fernandes), Sil (Débora Lamm), Ana (Bianca Byington), Ricardo (Paulo Gorgulho), Lívia (Raquel Karro), Geraldo (Leonardo Medeiros) e Telma (Bel Kowarick). E se assistiu, você perceberá que se trata de um drama denso com direito a muita investigação e cenas de tribunal. Enquanto a questão dramática é se as famílias conseguirão punir as pessoas responsáveis pelo incêndio, assistimos ao mesmo tempo ao processo de luto e transformação destes pais e mães que se colocam contra um sistema moroso e parcial de justiça.


A série começa com a apresentação de cada família, e o piloto, grosso modo, é dividido em duas partes principais: jovens se preparam e chegam à Kiss VS pais e mães buscam esses jovens. O que separa uma parte da outra é o incêndio que, não por acaso, se inicia bem no ponto de virada que aqui chamo de CRISE, também conhecido como MIDPOINT por geralmente ser mais ou menos no meio do roteiro (na estrutura dita clássica).


Como vai ser possível perceber pela análise, a série tem uma estrutura bastante inteligente que ajuda a manter a tensão a todo momento e, sobretudo, lidar com um problema difícil: o fato de boa parte do público provavelmente já conhecer a história e, portanto o desfecho. Por isso, Todo Dia a Mesma Noite é um ótimo estudo de caso para quem se interessa pela escrita de séries baseadas em fatos reais. Chamo atenção para o tempo que o piloto despende construindo as famílias, ou seja, fazendo com que nos apeguemos às personagens protagonistas. Se por um lado já conhecemos mais ou menos os fatos reais, nunca estivemos tão perto destas personagens específicas. E como você já deve suspeitar, não é difícil sentir empatia, um dos mecanismos básicos de roteiro para fazer com que colemos na tela, por personagens que estão passando pelas circunstâncias em que se encontram mães e pais das pessoas mortas na Kiss.


“Era importante mostrar que eram indivíduos, não uma estatística. Não são 242, é a Mari, é o Guilherme, é o Marco, é o Felipinho. E essas histórias representam todas, porque na individualidade você vê a coletividade” (entrevista para a CNN em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/serie-sobre-boate-kiss-estreia-hoje-e-cnn-falou-com-elenco-esquecer-e-negar-a-historia/)

O autor Gustavo Lipsztein explica que o recorte partiu da ideia de não se limitar a mostrar o sofrimento. Ele diz que se interessou pela história de familiares das vítimas que foram processados pelo Ministério Público enquanto reivindicavam justiça. Essa última frase, sozinha, já poderia quase ser uma logline. Importante chamar atenção para a máxima da dramaturgia clássica que Gustavo traz à tona na entrevista: na individualidade, a coletividade. Falarei mais sobre isso adiante.


No gráfico abaixo,

procuro levantar alguns dos principais pontos de virada de cada episódio da série. Pra quem não conhece o esquema, quebro os episódios na vertical, e na horizontal você consegue ver o arco da série inteira, ou seja, qual a função de cada episódio na estrutura da temporada. Lembrando que esta é uma análise minha e não necessariamente corresponde a como a série foi estruturada pelos autores.




Dá para perceber que alguns pontos de virada que seriam coletivos, muitas vezes acontecem com um núcleo específico, e isso é suficiente para compreendermos que outras personagens passaram pela mesma situação. Quando, em uma das cenas mais dolorosas do piloto, Lívia busca o filho entre os corpos estendidos diante da boate, imaginamos que outras mães provavelmente fizeram o mesmo. A busca de Sil e Pedro pela filha nos hospitais certamente foi vivida por outras personagens. Mas a atenção que o roteiro dá a um núcleo específico cumpre a função de, novamente, nos aproximar destas mães e pais -- e também das famílias reais. Isto é uma ficção; ela referencia a realidade para explicitar um ponto de vista. Precisamos assistir à história para entendermos que ponto de vista é este. Dou um exemplo. Um dos mecanismos que mais me emociona na série é o uso dos aparelhos celulares, que nos lembra a todo momento que o que estamos vendo é uma metonímia. Os telefones no chão da boate incendiada e no ginásio para onde são levados os corpos tocam a todo momento. Nas telas: "mãe" e "pai". É assim que Pedro encontra sua filha.




É Pedro, inclusive, a personagem que passa por maior transformação interna. Ele é um bom exemplo que uma personagem que, para tentar atingir seu objetivo de punir os responsáveis pela morte da filha, precisa adquirir confiança para se colocar em ambientes desconfortáveis, como um julgamento. Não à toa, o clímax do último episódio também é vivido por ele, quando faz um discurso para convencer a juíza a permitir que o caso da Boate vá a júri popular, aumentando a chance de os réus serem punidos. Tudo para descobrirmos (ou lembrarmos) em cartela ao final que os esforços seguem ainda hoje; dez anos depois, não houve punição. Escolhi manter um gancho mesmo sabendo que minisséries se encerram em uma temporada para chamar atenção para o arco do episódio e o fato de a questão dramática da série não se fecharem: ainda não sabemos se haverá punição. O episódio final se chama "Sem Fim" em um jogo com a regra da dramaturgia clássica de que uma história tem "começo, meio e fim". Se tudo o que acompanhamos até agora estava perfeitamente dentro desta estrutura, a história matriz, infelizmente, não permite a satisfação de um final definido. Por enquanto, teremos que conviver com este incômodo.



 

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